Monthly Archives: June 2012

“O sonho da razão”, do Teatro da Cornucópia

De metáforas e exercícios semânticos se tece a nova produção do Teatro da Cornucópia. Com um título que invoca a gravura de Goya “El sueño de la rázon produce monstruos”, “O sonho da razão” é uma colagem de textos do iluminismo francês, em que – a partir de Voltaire, Voisenon, Sade e Diderot – Luís Miguel Cintra entretém uma singular urdidura em torno dos tópicos universais das Luzes. Pondo em confronto ciência e religião, um cético homem às portas da morte, um padre, um médico, uma mademoiselle e, finalmente, uma Continue reading

“O moinho e a cruz”, de Lech Majewski

Numa tela em que se abre e fecha o ciclo da vida, o pintor flamengo Pieter Bruegel, O Velho faz coincidir com radical originalidade e acurado detalhe o quotidiano bucólico da vida campestre, as atrocidades das perseguições religiosas do século XVI e a Paixão de Cristo. “Die kreuztragung Christi” (comumente conhecido em Portugal como “Subida ao Calvário”), de 1564, é o quadro de maiores dimensões do primeiro dos pintores da família Bruegel, aquele em que faz figurar 500 personagens, centradas num eixo que propositadamente mantém velado – a cruz. Desafiando os cânones de expressão renascentista, sob o contexto bíblico faz da arte gesto de denúncia dos horrores infligidos pela inquisição espanhola. Tomando por inspiração esta obra de Bruegel e uma monografia do crítico de arte Michael Francis Gibson nela baseada (“’Le portement de croix’ de Pierre Bruegel, l’Aîné”, de 1996), o cineasta polaco Lech Majewski dá vida a este “quadro que conta muitas histórias”, numa magistral peça metacinematográfica. Entre as Continue reading

“O tigre na rua e outros poemas”, antologia de poesia ilustrada por Serge Bloch

“O poema está lá, mas para o ver é preciso um microscópio”. Poema micróbio, poema absurdo, poema para um sorriso, riso e gargalhada. Poder-se-ia “Pedir com bons modos” – como, aliás, se sugere nesta nova e exemplar peça da Bruaá – tudo isso. Mas esse “tudo isso” já lá está… Sob o signo de Daniil Harms (cuja escrita de pendor vagamente infantojuvenil já havia sido reunida de modo paradigmático, e também pela Bruaá, em “Esqueci-me como se chama”, do ano passado) e da sua sugestiva aparição de um tigre na rua, é agora apresentada uma insigne coletânea de poesia humorística, de (pro)vocação tendencialmente nonsense e vanguardista, que faz viajar todo aquele que a lê pelas Continue reading

Julia Holter, disco e concertos em Guimarães e em Lisboa

Foi com uma tragédia do classicismo helénico que a californiana Julia Shammas Holter se revelou no passado ano com o seu primeiro longa duração. “Tragedy” (2011), inspirado em “Hipólito”, de Eurípides, assumia uma misteriosa e idiossincrática intangibilidade, que agora se firma no iluminado  “Ekstasis” (2012). Admitindo o compromisso estético para com um universo próprio, particularmente intuitivo, a compositora e multi instrumentista ocupa o vazio com Continue reading

“Moneyball – Jogada de risco”, de Bennett Miller

No mundo do basebol, o diretor desportivo de uma pequena equipa decidiu contrariar as tradicionais convenções de estratégia para repensar o jogo a partir de uma fórmula matemática. Com um orçamento reduzido, recorrendo apenas a leis equacionais e estatísticas, Billy Beane gerou um método capaz de inventariar jogadores de alto valor desportivo e de baixo custo financeiro – e que usualmente passavam despercebidos -, dando assim ao seu Oakland Athletics um record histórico de Continue reading

Madonna, disco e concerto em Coimbra

Quatro anos após as voluptuosas incursões pelo hip hop e pelo r&b de vanguarda – comandada por estetas do calibre de Pharrell Williams, Kanye West, Timbaland ou Justin Timberlake – em “Hard candy” (2008), alojado na nossa memória afetiva como o seu mais insigne longa duração, Madonna volta a delinear os trilhos para a pista de dança com uma sonoridade mais devedora da pop eletrónica que domina o mainstream musical deste início de século. “MDNA” – título que tanto parece convocar a antroponímia da autora como garantir que o que aqui se apresenta é, em suma, o seu DNA estético – remete, ainda que sem igual brilhantismo, para Continue reading

Josh T. Pearson ao vivo em Lisboa e em Vila Nova de Famalicão

Figura atormentadamente crística, Josh T. Pearson parece pertencer a uma região inóspita da mente criativa humana. Na realidade, foi durante quase uma década que nela vagueou, após a cisão com os Lift To Experience e essoutra terra árida que é o Texas onde nasceu. Entre Paris e Berlim, o seu mal errante veio a culminar em poesia amaldiçoada e folk solitária. Em 2011, apresentou a solo o vertiginoso àlbum “Last of the country gentlemen”, documento de honesta confissão e intangível resiliência, em que Pearson, despojado de artifícios, se entrega à purgação de fantasmas passados: o vício do Continue reading