De metáforas e exercícios semânticos se tece a nova produção do Teatro da Cornucópia. Com um título que invoca a gravura de Goya “El sueño de la rázon produce monstruos”, “O sonho da razão” é uma colagem de textos do iluminismo francês, em que – a partir de Voltaire, Voisenon, Sade e Diderot – Luís Miguel Cintra entretém uma singular urdidura em torno dos tópicos universais das Luzes. Pondo em confronto ciência e religião, um cético homem às portas da morte, um padre, um médico, uma mademoiselle e, finalmente, uma marechala versam sobre o livre exercício da razão, a experiência do todo sensível e o primado dos impulsos da carne em detrimento de uma suposta vontade deliberada. Num palco em que se dirimem os dogmas da teologia, desacreditam as crendices dos hipócritas e denunciam as barbáries de uma civilização que fez do homem natural um homem artificial, brada-se por filosofia, vida, sentidos, prazeres, volúpia, cópula, e averigua-se sobre o propósito da honra e da virtude quando a moral dos costumes religiosos é desvendada como preceito que coarta o espírito. Do eixo animal se pensa o ser humano para uma interrogação e afirmação constantes – em jeito de cartesiana dúvida metódica – de que a autonomia das espécies se firma à revelia do divino. Com apontamentos de arguta comicidade, a peça que a Cornucópia agora cria põe no teatro a condição humana para um processo de autoconhecimento e reavaliação dos valores intemporais do século XVIII, que substituíram Maria pela Razão nos altares da nossa história.
28 junho > 8 julho + 17 > 29 julho
espetáculo “O sonho da razão”, a partir de Denis Diderot, Voltaire, Marquês de Sade e Claude-Henri de Fusée de Voisenon, adaptação e encenação de Luís Miguel Cintra, com Luís Miguel Cintra, Dinarte Branco e Leonor Salgueiro
Teatro do Bairro Alto, Lisboa
João Eduardo Ferreira:
Aqui se fala de como a noção de corpo e de matéria vai ao encontro da razão do sonho. “Noção” quer dizer “consciência”, e “sonho” é assumido como a “razão” dos que “querem agir” e não dos que apenas “agem”. Frente ao público, discute-se a evolução das espécies e a do pinto dentro do ovo. Ainda se demonstra como o pó de mármore, através do húmus e da horta, chega à barriga daquele que discrimina o “bem” e o “mal” através da percentagem relativa de “benefícios” e “malefícios”. Finalmente, sobre o palco se conclui que, possuindo “corpo” e “razão”, fica o indivíduo livre da existência de Deus, podendo assim praticar o bem de modo “consciente”.