“Cadernos de Serafino Gubbio, operador de câmara”, de Luigi Pirandello

Quando os irmãos Lumière filmaram a saída dos operários da usina, muitos foram aqueles que se fascinaram pela representação da imagem em movimento. Outros houve, porém, que temeram esse espetro fantasmático (tal como acontecera aquando do aparecimento da fotografia – e relembre-se, a este propósito, a atitude de veemente condenação de Baudelaire). Aquilo que Luigi Pirandello explora nesta crónica romanceada de 1916 não é tanto esta relação de temor com a imagem cinematográfica, mas com a própria indústria, que entretanto se automatizava para um procedimento cada vez mais mecânico e que tendia a dispensar o serviço do homem que nela trabalhava. Serafino Gubbio é um operador de câmara amargurado com o suplício crescente de ser apenas uma mão que roda a manivela. Espetador daquilo que filma, escravo de uma máquina, é o protótipo do homem moderno que se vê rodeado por todo o tipo de novos artefactos tecnológicos e pela incessante fúria do movimento. Pirandello escrutina os primórdios do cinema, revestindo-o de um lado perverso e quase demoníaco. Uma entre uma infinidade de mãos anónimas, Serafino é a mão protésica do instrumento que pertence a um ser que já não é um homem – ele próprio se transformou numa máquina. Dotado de uma “impassibilidade perfeita”, o operador dá corpo a uma matéria que não passa de uma mera sombra para ser contemplada, e está, nos termos de Pirandello, condenado a uma espécie de eterna maldição (“até mesmo no além terás que dar à manivela”). Estes sete cadernos são simultaneamente uma narrativa sobre uma viagem a Roma (que espoleta a reflexão sobre o ofício de operador de câmara) e uma descrição do frémito nos estúdios da Kosmograph, a casa cinematográfica onde o narrador exerce funções e onde relata o processo da rodagem dos filmes, o seu olhar sobre os atores e aquele fulgor de captar “o momento”. À medida que tece considerações sobre a modernidade e sobre o advento desta indústria, Pirandello esboça subliminares antíteses entre o teatro e o cinema (preterindo o segundo perante o primeiro, como “ação viva de corpo vivo”), ao mesmo tempo que denuncia uma degeneração da atividade artística, pelo modelo do operador de câmara feito ferramenta acessória de uma “enorme aranha negra no seu tripé de pernas arqueadas”. Súbdito do cinematógrafo, Serafino Gubbio torna-se cada vez mais indiferente e apático, incapaz de pensar e sentir, humilhado que está por “um trabalho estúpido e mudo” e por uma máquina que paulatinamente lhe devora a alma. “Cadernos de Serafino Gubbio, operador de câmara” é também, por isso, uma reflexão filosófica e intempestiva sobre o tédio e o absurdo, sobre o ridículo da vida enquanto ilusão e instante que se evola, que logo se escapa, para nunca mais regressar.

livro “Cadernos de Serafino Gubbio, operador de câmara”, de Luigi Pirandello
Fim de Século, 2012

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