Apresentado em Cannes no ano passado, “Michael”, o filme que regista a estreia na realização de Markus Schleinzer, discípulo e colaborador de Michael Haneke (foi diretor de casting nas suas obras primas “A pianista” e “O laço branco”), é um olhar gelidamente neutro sobre a relação de um pedófilo com a criança de dez anos que mantém enclausurada na cave da sua casa. Uma longa metragem que entrecruza a decadência de uma criatura quase não monstruosa e os seus hábitos vulgarmente humanos: com um distanciamento emocional cirúrgico, o realizador apresenta a realidade de um homem aparentemente pacato no seu quotidiano, repartido entre a rotina do seu emprego numa agência de seguros e a rotina do desequilíbrio comportamental que mantém com o jovem. Lacónico mas intangivelmente perturbador – porque ora doentio e sexual, ora afetivo e quase paternal –, o relacionamento de Michael com a criança é escrutinado por Schleinzer na minúcia dos detalhes. O ciclo dos dias – feito de uma normalidade estruturada – dilui-se progressivamente, instalando um descontrolo que o protagonista será incapaz de reverter. Sabendo convocar uma ágil máscara de suspense, “Michael” é um espantoso drama que, pela frieza do retrato, surge no contexto da história cinematográfica recente para inquietar o espetador com essa sombra pairante que é o eterno desconhecimento do outro.
24 maio [estreia nacional]
filme “Michael” [“Michael”], de Markus Schleinzer, com Michael Fuith, David Rauchenberger,…
Alambique, 2011 / 2012
João Eduardo Ferreira:
A estrutura metálica do que não pode existir. O esqueleto de uma infância prematuramente apodrecida. Os pilares do inaudível, do invisível, do indizível, do ilegal. O limite compreensível para o que não se compreende. O labirinto da realidade que se aceita como verdadeira, mas que não é mais do que o manto cruel de uma verdade incontornável. O hiper-realismo repugnante filmado na luz dolorosa da sobrevivência mantida apenas pela capacidade surreal desenvolvida por certas crianças.