Seria efetivamente inevitável? Ou nem por isso…? As guitarras vão contaminar inapelavelmente o Jazz em Agosto deste 2014. Depois de centrar a ação, entre outros instrumentos e tangentes concetuais, na trompete (em 2009) ou numa equação de “Pianos, baixos, tubas & vozes” (em 2007), a 31ª edição do festival lisboeta – que começa com o mês que o nomeia – foca-se com particular empenho num instrumento cujo protagonismo no repositório jazzístico não é – salvo uma generosa dúzia de exceções, extensíveis de Charlie Christian a Derek Bailey, passando por Django Reinhardt, Wes Montgomery ou Jim Hall – por demais assinalável. Partindo dessa premissa, difícil seria garantir uma agenda com o mesmo índice médio de excelência das últimas anuidades deste vital encontro da música improvisada contemporânea com a aura de vocação (f)estival do Anfiteatro ao Ar Livre da Gulbenkian. Podemos lamentar a oportunidade perdida de enredar neste contexto monumentais criadores limítrofes a estas cartografias como Arto Lindsay (nomeadamente celebrando a recente publicação do seu fortuito tête-à-tête com Paal Nilssen-Love), Kiko Dinucci (comandando os imaculados Metá Metá ou algum dos seus combos de mais declarada veia intuitiva), Bill Orcutt, ou até esse Elliott Sharp que no ano passado largou a sua guitarra para gravar (assumindo um saxofone e um rasgo de inexcedível inspiração direcionado a Nate Wooley e restantes três instrumentistas que aí o suportam) o CD “Elliott Sharp Aggregat Quintet”, editado pela “nossa” Clean Feed, provavelmente o mais fascinante registo da sua prolixa obra. No panorama local, Manuel Mota ou Rafael Toral, ambos com guitarras cheias de inconformadas reflexões convertidas a disco no decurso do último ano, também mereciam ver materializada a possibilidade de engrandecer este cartaz com as virtudes dos seus individuais truísmos sonoros. Enfim, mesmo numa conjuntura programática assaz espartilhada, as considerações hipotéticas antecipam sempre o volume especulativo que a nossa imaginação permite – tal como tudo no jazz, afinal… Mas, na prática, o que é irredutivelmente louvável é a aproximação de mais um Jazz em Agosto que, apesar da hecatombe cultural que vai perpassando Portugal, nos complementará animicamente as dez primeiras noites (e alguns dos primeiros fins de tarde) do mês.
Sintomaticamente, a promessa pinacular deste calendário encontra-se no escasso território alheio às guitarras: o recital de apresentação do depuradíssimo álbum “Rex, wrecks & xxx” (2013), do egrégio saxofonista Evan Parker com o pianista Matthew Shipp, dois felizes visitantes frequentes do evento (regressam dois anos depois das respetivas últimas passagens concertísticas pelos jardins idealizados por Gonçalo Ribeiro Telles e António Viana Barreto: em 2012, Parker veio com outro piano muito distinto, o de Misha Mengelberg, e Shipp tocou em trio com o baixo e a bateria de Michael Bisio e Whit Dickey). Um diálogo imperativo para quem acredita na eterna reinvenção da abstração musical telepática passível apenas de ser forjada pelos mais instintivos criadores, onde tudo é metodicamente novo, singular, revigorante, miraculoso, dúctil, volátil e, a um tempo, perene e perecível. Nada será como antes, tudo será um intangível devir formal, como se do mais prelativo palimpsesto sónico se tratasse.
O músico matricial e aglutinador do programa, contudo, é outro: Fred Frith, o guitarrista inglês fundador – em 1968! – dos proféticos Henry Cow, e, desde a transição das décadas de 70 para 80, um dos mais solicitados estetas da downtown nova-iorquina, da pluralidade jazzística às suas adjacências. Frith ocupará o palco em três momentos, em torno dos quais eclodem distintas expetativas: gerindo a dignidade que resta aos seus (outrora visionários) Massacre, geradores de um conceito de som irrepreensivelmente cristalizado no longa duração “Killing time”, a obra-prima de 1981 que constituiu a única entrada na discografia da sua exemplarmente curta primeira vida (na qual o trio vivia igualmente do aventureiro arrojo lúdico e mercurial do baixista Bill Laswell e do baterista Fred Maher, músico substituído na atual formação – que vai sobrevivendo, com menor ou maior destreza mimética desde 1998 – por Charles Heyward, o ex-vocalista, teclista, percussionista e manipulador sonoro dos seminais This Heat); provavelmente mais esclarecida e frutuosa será a entrega do académico quarteto MMM, ou Mills Music Mafia, ensemble erguido por Frith e por outros três dos mais reconhecidos docentes do Mills College, em Oakland (a exímia contrabaixista Joëlle Léandre, o saxofonista Urs Leimgruber e o pianista Alvin Curran); mas a epifania suprema pode nascer no contexto da estreia mundial, encomendada pelo Jazz em Agosto, da associação de Frith à mesma Léandre e ao imenso percussionista Hamid Drake – uma surpresa em potência, movida pela experimentada disciplina de três executantes cuja simbiose criativa facilmente deverá atingir o seu mais cabal estado de graça, numa dádiva musical que será aconselhável não ignorar. Desta tríade, Hamid Drake acompanhará ainda um desequilibrado quarteto do trompetista Franz Hautzinger, e, no campo do cinema, o festival oferecerá (literalmente…) a oportunidade de ver no ecrã do Auditório 3 dois notáveis filmes documentais sobre Fred Frith e sobre Joëlle Léandre: “Step across the border”, de 1990, sobre o pulsar comunitário, angular, intrépido e profundamente idiossincrático de Nova Iorque de 80’s, com Frith como seu estratégico e revelador epicentro; e “BasseContinue”, de 2008, uma longa metragem que dá ênfase ao pensamento enraizadamente artístico, humanista e existencialista da eclética contrabaixista e vocalista gaulesa.
Destaque final ainda para outros títulos que compõem a pedagógica partilha cinematográfica deste Jazz em Agosto, com um sublinhado especial para “Soul of a man” (2003), de Wim Wenders, com produção executiva de Martin Scorsese (e integrado na coleção de sete filmes por si concebida, com direção de sete realizadores, sobre os blues…): uma lúcida e poética saga sobre a inefável solidão de dois trajetos praticamente invisíveis no legado imaterial de canções que transpuseram os tempos, os modos, os blues, chegando incólumes a todo o futuro que as saiba acolher – Skip James e J. B. Lenoir, génios que a história paulatinamente vai (re)conhecendo. Não menos dignas de nota são as películas “The breath courses through us” (2014), sobre a comemoração dos 35 anos de carreira do assombroso New York Art Quartet, e “Dancing to a different drummer” (1994), sobre a veterana e contagiante vitalidade do baterista Chico Hamilton.
Bruno Bènard-Guedes
1 > 10 agosto
concerto de Evan Parker e Matthew Shipp [dia 2, 9.30 pm]
concerto de Fred Frith, Joëlle Léandre e Hamid Drake [dia 7, 9.30 pm]
concerto de MMM Quartet [dia 8, 9.30 pm]
concerto de Massacre [dia 9, 9.30 pm]
festival Jazz em Agosto 2014
Anfiteatro ao Ar Livre, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
1 > 10 agosto
filme “The soul of a man”, de Wim Wenders [dia 2 + 3, 6 pm]
filme “The breath courses through us”, de Alan Roth [dia 6, 6 pm]
filme “Dancing to a different drummer”, de Julian Benedikt [dia 7, 6 pm]
filme “Bassecontinue”, de Christine Baudillon [dia 8, 6 pm]
filme ” Step across the border”, de Nicolas Humbert e Werner Penzel [dia 9, 6 pm]
festival Jazz em Agosto 2014
Auditório 3, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
texto originalmente publicado no Jornal de Letras nº 1143, de 23 julho 2014