Um prodigioso multimilionário de 28 anos atravessa as ruas de Nova Iorque para fazer um corte de cabelo – “o” corte de cabelo. “I need a haircut”, “we need a haircut” são as mnemónicas que o egocêntrico visionário Eric Packer (Robert Pattinson) repete do alto da soberba com que observa o mundo que o rodeia, e que polariza na sua futurista limusina – habitat capitalista onde vive, se recolhe e faz girar o cosmos adjacente. A partir de um antro em que tudo se negoceia de modo dissoluto e desenfreado – o dinheiro, os corpos, a arte –, Cronenberg transpõe para narrativa fílmica uma ordem mundial económica e ética em decadência, de que Packer é figura síntese. Mas, quando um espetro assombra o mundo e a ratazana parece converter-se na unidade monetária, Eric não permanece indiferente. Nas longas horas em que a limusina percorre Nova Iorque, Cronenberg expele o protagonista da sua zona de conforto, lançando-o progressivamente numa cidade em incendiária combustão, para finalmente o confrontar com a sua derradeira ruína. Tomando por base o romance homónimo de Don DeLillo (de 2003), produzido por Paulo Branco e estreado neste último Festival de Cannes, “Cosmopolis” prima pela exploração exímia do gesto cinematográfico, do qual os fortes quadros visuais ou os contundentes e escrutinadores diálogos (como o magistral momento final de Pattinson e Paul Giamatti) são apenas dois apontamentos possíveis. Da artificialidade das relações humanas e do seu caráter cada vez mais mercantilizado, “Cosmopolis”, enquanto profético e vertiginoso discurso sobre uma sociedade vilipendiada pelo dinheiro, é também ensaio da revelação de um Robert Pattinson que, pela mão de um dos mais relevantes realizadores do cinema moderno, se afirma ator capaz de performances dotadas de um grau de excelência traçado numa esfera situada muito para lá do que o que a saga “Crepúsculo” faria suspeitar.
31 maio [estreia nacional]
filme “Cosmopolis” [“Cosmopolis”], de David Cronenberg, com Robert Pattinson, Paul Giamatti, Juliette Binoche,…
Leopardo Filmes, 2012
João Eduardo Ferreira:
“Cosmopolis” é um filme para ser lido. É um livro para ser levado à cena em palco restrito (uma limusina de papelão, uma barbearia falida, um sótão visionário), frente a uma plateia que não sofra de claustrofobia. Apenas se safa quem apostar na redenção e na salutar ansiedade transmitida pelo risco que se deseja voluntário. Só chegará ao futuro quem dele duvidar.
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entrevista a Robert Pattinson no Sound + Vision [ 1 ] entrevista a Robert Pattinson no Sound + Vision [ 2 ]