O título do último filme do cineasta turco Nuri Bilge Ceylan poderia inicialmente remeter-nos para o clássico de Sergio Leone, “Era uma vez no Oeste”. Mas do western spaghetti do italiano, “Era uma vez na Anatólia” parece apenas aproximar-se através das paisagens áridas da Turquia rural que Ceylan filma e, num plano de primeira ordem (e com notável sensibilidade estética), explora. Um grupo de polícias, um médico legista, um procurador jurídico, um par de coveiros e dois alegados homicidas procuram um cadáver, a vítima de um brutal crime. O suspeito principal, que sabemos pela narrativa já em curso ter confessado o delito, não se recorda do local onde terá enterrado o corpo, pelo que os homens percorrem as estepes da Anatólia até encontrarem e exumarem o morto. A busca e a viagem pela Turquia asiática é paralela a um confronto com a vida e a experiência limite da morte (a desse corpo desenterrado e a da sua fria autópsia, que Ceylan filma ora com ironia, ora com lugubridade). Com o corpo exumado, o realizador examina os planos de ordem subterrânea, metafísica e mental das personagens – de forma assinalável na figura de Clark Gable cadavérico do procurador e na sua relação com o médico -, fazendo de “Era uma vez na Anatólia” não só uma espantosa incursão cinematográfica pelas paisagens turcas, mas também pelo que há de mais sombrio na condição humana. Ceylan impregna o espaço de uma aura fantasmática e obscura, joga exemplarmente com a luz, a sombra, a escuridão, a noite e a tempestade (quase em jeito de prenúncio, como Michelangelo Antonioni em “A aventura”), move a câmara por entre os rostos e a natureza, e faz dos silêncios e dos esparsos diálogos momentos carregados de sentido. Grande Prémio do Júri do Festival de Cannes de 2011, conjuntamente com “O miúdo da bicicleta”, dos irmãos Dardenne, “Era uma vez na Anatólia” estreia hoje em exclusivo no King, Lisboa. Aproveitando a ocasião, entre amanhã e domingo, o Espaço Nimas, também na capital, promove um ciclo dedicado às três obras anteriores do realizador, todas elas premiadas em Cannes: “Uzak – Longínquo” (Grande Prémio do Júri e Prémio de Melhor Ator), “Climas” (Prémio da Crítica) e “Três macacos” (Prémio de Melhor Realizador). Uma oportunidade para conhecer ou relembrar o trajeto que conduziu a “Era uma vez na Anatólia”, filme decisivo no quadro das estreias agendadas para Portugal em 2012.
3 maio [estreia nacional]
filme “Era uma vez na Anatólia” [“Bir zamanlar Anadolu’da”], de Nuri Bilge Ceylan, com Muhammet Uzuner, Yilmaz Erdogan,…
Clap Filmes, 2011 / 2012
4 > 6 maio
Ciclo Nuri Bilge Ceylan
“Uzak – Longínquo” [“Uzak”] [dia 4, 9.30 pm]
“Climas” [“İklimler”] [dia 5, 6 pm + 9.30 pm]
“Três macacos” [“Üç Maymun”] [dia 6, 6 pm + 9.30 pm]
Espaço Nimas, Lisboa
João Eduardo Ferreira:
Anatólia. Sobre a teoria da paisagem. Como a geografia molda o olhar ou o critério de um olhar que se sabe subjugado pela linha do horizonte. É alinhada uma busca incessante pela verdade que só pode ser intercetada pela morte. Mas o cadáver esconde-se, tal como o olhar. Torna-se necessário encontrá-lo, retalhá-lo, para que se demonstre a cicatriz de uma sociedade, de uma família, de uma paisagem.
site de “Era uma vez na Anatólia”