“Os intervalos do cinema”, de Jacques Rancière

capa jacques ranciere os intervalos do cinema

Em “O espectador emancipado” (Orfeu Negro, 2010), discutindo o pensamento que se enreda com o ato de ver, Jacques Rancière socorria-se de uma expressão de Godard: “a fraternidade das metáforas”. Ou seja, “a possibilidade de escrever de múltiplas maneiras a história do século em virtude do duplo poder de cada imagem: o de condensar uma multiplicidade de gestos significativos de um tempo e o de se associar com todas as imagens dotadas do mesmo poder.” Daí derivava, aliás, um luminoso enunciado sobre as “História(s) do cinema” (1988 / 1998), definindo o labor godardiano como uma construção “no ecrã de video, com os meios do video, de um cinema que nunca existiu.” Neste livro, escrito três anos mais tarde, o contraponto dessa fraternidade diz-se através dos “intervalos” que o cinema expõe e dissemina, entre matéria e sombra, arte e divertimento. Tais movimentos levam o autor a um ziguezague fascinante, desde a conceção aristotélica da narrativa até à pedagogia pela imagem segundo Rossellini, passando pelas experiências radicais de Vertov e Hitchcock, Straub e Pedro Costa. Talvez por isso, não podemos deixar de sentir uma dramática insuficiência na palavra “intervalos”, apesar de tudo distante do sentimento de distância (ligado à duração exigida para o respetivo percurso) envolvido no original “écarts”. Reagindo contra o consumismo acéfalo das imagens, mas também negando a consagração da sua suposta opacidade, Rancière é esse filósofo da distância vivida entre o olhar e o movimento. Dito de outro modo: no gesto obstinado de pensar o cinema para além de qualquer determinismo histórico, ele convoca-nos também para uma postura contundente, sem arrogância, que aceita o facto insólito, porventura indizível, mas essencial, de o filme ser também um objeto que pensa. Será, talvez, uma ponte possível com o livro “Filmosophy”, de Daniel Frampton (Wallflower Press, 2006): pensamos e somos pensados pelas imagens. Escusado será dizer que, na sua nobreza existencial, este é também um livro contra a formatação quotidiana da televisão.

João Lopes

livro “Os intervalos do cinema”, de Jacques Rancière
Orfeu Negro, 2012

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