“Crazy Horse”, de Frederick Wiseman

Ao cineasta Frederick Wiseman corresponde um dos mais nobres e decisivos capítulos da história do documentário no cinema das últimas décadas. Como homem profundamente sábio que é, tem sido o arauto de um ângulo de observação da sociedade contemporânea – subtil nos seus meios mas incisivo nos seus fins, e pleno de uma profunda consciência artística – que tendencialmente toma como matéria base de ação o seu centro operacional estratégico: as pessoas, mais ou menos comuns, e a mundaneidade dos seus trabalhos e rotinas. Desde há mais de quatro décadas que Wiseman põe a nú nas suas películas uma série de forças laborais que, de uma forma ou de outra, fazem o mundo avançar: da instituição para criminosos com doenças mentais retratada na sua estreia, “Titicut follies” (de 1967), à academia de boxe do anterior “Boxing gym” (de 2010, infelizmente sem edição em Portugal), passando por escolas, hospitais, esquadras de polícia, tribunais ou pela companhia Le Ballet de l´Opéra de Paris (no monumental “A dança”, de 2009, também com edição em dvd pela Clap), até chegar a este imaculado “Crazy Horse”, que convive com o quotidiano da preparação do primeiro espetáculo novo que o cabaré parisiense com o mesmo nome apresentaria num longo período de tempo. O realizador, com mais de 80 anos, filma um conceito com mais de 60 como se a energia juvenil dos corpos e dos atributos performativos das bailarinas fosse a matéria narrativa suprema que funde uma exigente disciplina ética com os sonhos mais voláteis do show business, dando a ver tudo o que de mais humano aqui se revela como caminho que paulatinamente torna cada um destes profissionais mais próximos da essência mítica das suas criações. Tal como admitiu em diversas entrevistas, Wiseman mostra que o processo de criação de fantasias eróticas não é um milagre que acontece espontaneamente no momento da atuação, mas sim fruto de um duríssimo e desgastante trabalho prévio – também por isso, associa uma carga de sensualidade consideravelmente maior a alguns instantes de bastidores das bailarinas, com mais roupa e menos fantasia, com mais fator humano e menos intangibilidade onírica. Tudo filmado e contado como se nenhum intermediário houvesse, como se o olhar de Frederick Wiseman fosse só uma máscara para o nosso olhar. Puro e brilhante. Essencial.

dvd “Crazy Horse” [“Crazy Horse”], de Frederick Wiseman
Clap Filmes, 2011

 

João Eduardo Ferreira:
Frederick Wiseman ganha velocidade em “La danse – Le ballet de l’Opéra de Paris” (2009) e apresenta o princípio marxista que dá o valor ao trabalho, neste caso o da beleza e do espetáculo. Agora reavalia essa mais valia em “Crazy horse”. Um trabalho profundo realizado sobre o corpo feminino, a respetiva plasticidade dramática e a densidade do seu futuro.

João Lopes:
Será que existe uma maneira “justa” de fazer um documentário? Frederick Wiseman acredita que sim. Mas não em nome da justiça, antes por desejo de verdade. Dito de outro modo: é preciso estar totalmente do lado daquilo que se filma. Problema moral e formal que, no caso do mais célebre cabaret do mundo, ele resolve com a serenidade de sempre: filmando o trabalho. E porque a nudez é, aqui, um significante decisivo, importa acrescentar que a exposição do corpo nunca decorre de uma qualquer ausência de códigos. Bem pelo contrário: a nudez é um dos mais complexos códigos culturais. Tudo o resto é moralismo, quer dizer, guarda-roupa. texto no Sound + Vision

 

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