Já tinha reunido o respeito e a profunda admiração de uma fatia significativa da comunidade cinéfila portuguesa com os espantosos “A esquiva” (“L’esquive”, 2003) e “O segredo de um cuscuz” (“La graine et le mulet”, 2007), mas foi com este “Vénus negra” que o realizador de origem tunisina Abdellatif Kechiche passou a integrar de pleno direito um restrito grupo de nomes que, em anos recentes, tem elevado o cinema de autor a um patamar de exigência artística extrema. Estreada entre nós em agosto passado e recentemente convertida para dvd, esta é a chocante história verídica de uma empregada doméstica hotentote trazida pelo seu patrão, há cerca de 200 anos, da sua casa na África do Sul para a Europa (Londres e Paris), e da exploração desumana a que este a submete, exibindo o seu corpo disforme como um espetáculo de aberrações perante plateias constantemente esgotadas e em permanente e ignorante delírio. Vítima de humilhação radical e sem ter em quem confiar, Saartjes Baartman – assombrosamente interpretada pela estreante atriz cubana Yahima Torres – faz o pouco que está ao seu alcance no sentido de restaurar a sua dignidade, mas o cenário que a envolve revela-se absolutamente pernicioso, e, de trauma em trauma, acaba por conduzi-la inevitavelmente à morte, a única libertação possível aos 27 anos que estava condenada a sobreviver. Mostrando uma das mais impressionantes forças energéticas do cinema dos últimos anos, “Vénus negra” é uma obra tão dura quanto brilhante. Sem margem para grandes dúvidas, um filme que ocupará um lugar central na nossa memória por muito, muito tempo.
dvd “Vénus negra” [“Vénus noire”], de Abdellatif Kechiche, com Yahima Torres, Andre Jacobs,…
Clap Filmes, 2010 / 2011
João Eduardo Ferreira:
Abdellatif Kechiche continua a fazer cinema político. Do melhor cinema político. Após “O segredo de um cuscuz” (2007), “Vénus negra” transforma a consciência pública que ainda não olhava de frente para a condição humana. A estética é irrepreensível; o teatro, exemplar.
