Um ano depois do que aparentava ser um fortuito lapso de sentido na excelência costumeira da programação do mais carismático festival português de música improvisada, os sons de exceção jazzística estão nesta semana de regresso ao Anfiteatro ao Ar Livre da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, para abonar um cartaz que, tal como testemunhado numa generosa fatia das suas anteriores 31 edições, promete não repetir momentos embaraçosos como os que pontuaram a versão de 2014. A esperança foi, mais uma vez, estoica – e a recompensa aí está…
Se no fim de semana inaugural, 31 de julho e os dois primeiros dias de agosto, se anexaram a fama orquestral – sem proveito plenamente garantido – dos nomes consolidados que são Mats Gustafsson (saxofonista e compositor crescentemente regulado por excessos de todos os géneros, que tanto representam as suas mais idiossincráticas virtudes como os seus mais inelutáveis defeitos, aqui comandando a sua Fire! Orchestra, centrada no “original” futuro do jazz escandinavo, e o seu combo Swedish Azz, concentrado no passado original do jazz sueco) e Michael Mantler (empenhado em rever o seu seminal disco de 1968, “Jazz Composer’s Orchestra”, subtraindo vigor ao repertório enquanto adiciona currículo à acompanhante Orquestra de Jazz de Matosinhos), a partir de 4ª feira, dia quinto do mês, a música terá seguramente um valor acrescentado.
São muitos e muito diversos os fenómenos sónicos passíveis de acontecer entre a sonoridade instintiva, sensata, esclarecida e cerebral concebida pelo Red Trio enquanto anfitrião do saxofonista inglês John Butcher (dia 5) e a indisfarçável vocação para o contágio de um certo sentimento pós-bop e pós-rock do coletivo The Young Mothers (dia 7), idealizado pelo contrabaixista norueguês Ingebrigt Håker-Flaten na sua adotiva Austin, Texas, com um conjunto de meritórios músicos locais, ou da gaulesa Orchestre National de Jazz (dia 9), na sua atual encarnação supervisada pelo guitarrista e arranjador Olivier Benoît, coadjuvado pelo contrabaixista Bruno Chevillon, praticantes de um som urbano e hodierno, vincadamente europeu e cosmopolita, tal como o seu plano conceptual para cartografar um itinerário simbólico por capitais que também são estados de espírito criativos, encetado no ano transato na esmerada e apolínea Paris, e que por agora – i.e., pelo Jazz em Agosto – evoca Berlim no seu tom densamente povoado por espectros e paisagens de vanguarda.
Intercalado com essa tríade de propostas, o nosso investimento maior é, no entanto, confiado à dupla de recitais que mais louváveis memórias deverá coligir, ou seja, o inusitado encontro entre as teclas de Aki Takase e do vital Alexander von Schlippenbach (casal que se vem viabilizando, pessoal e artisticamente, há já mais de duas décadas) com o DJ illvibe (dia 6), (re-)ilustrando sonicamente a obra prima do cinema mudo “Berlin – Die Sinfonie der Grosstadt” (“Berlim – A sinfonia de uma capital”), dirigida pelo visionário Walther Ruttmann em 1927, num roteiro que por certo saberá encapsular o evo deste clássico na ação modernista que a ocasião proporcionará, recorrendo seguramente ao léxico lacónico, elíptico e minimalista que é propriedade intelectual do enorme pianista alemão; e a apresentação do superlativo “The Great Lakes suites” (dia 8), álbum que marcou indelevelmente o final do ano passado graças à miraculosa comunhão de intenções da composição e da trompete de Wadada Leo Smith e respetivo trio (o baixo de John Lindberg e a bateria dessoutro precetor que é Jack DeJohnette – substituído no concerto de Lisboa pelo percussionista Marcus Gilmore) com o saxofone alto e as flautas do histórico Henry Threadgill, seu convidado, numa epifania que se assemelha a um tratado sobre as possibilidades extremas da polaridade desenhada entre “individual” e “coletivo” no quadro das comemorações do meio século de vida da crucial Association For The Advancement Of Creative Musicians, da qual Wadada, DeJohnette e Threadgill fazem ou fizeram parte.
Com uma promessa de exigência, risco e liberdade musical deste calibre, o Jazz em Agosto pode novamente orgulhar-se de ser um palco com privilégios de carta branca para que os improvisadores que por aí passam temperem o jazz a seu gosto. Aliás, ser um palco com privilégios de carta branca para que… enfim, jazzem a gosto…
Bruno Bènard-Guedes
31 julho > 9 agosto
concerto de Fire! Orchestra [dia 31, 9.30 pm]
concerto de Michael Mantler’s Jazz Composer’s Update [dia 1, 9.30 pm]
concerto de Mats Gustafsson’s Swedish Azz [dia 2, 9.30 pm]
concerto de Red Trio com John Butcher [dia 5, 9.30 pm]
concerto de Alexander von Schlippenbach com Aki Takase e DJ illvibe [dia 6, 9.30 pm]
concerto de Ingebright Håker-Flaten’s The Young Mothers [dia 7, 9.30 pm]
concerto de Wadada Leo Smith’s The Great Lakes Suites com Henry Threadgill [dia 8, 9.30 pm]
concerto de Orchestre National de Jazz [dia 9, 9.30 pm]
festival Jazz em Agosto 2015
Anfiteatro ao Ar Livre, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
texto originalmente publicado no Jornal de Letras n.º 1170