É o devir da evolução humanista e o dever da revolução ontológica que se revela aos sentidos desde os acordes inaugurais desta suite. Ensaio de elaborado pendor teórico aplicado numa prática pianística de inestimável vocação lúdica, “Juneteenth” é uma apaixonada narrativa iluminada a liberdade, erguida sobre as fundações das lutas anti-esclavagistas e suas conquistas, celebradas na festa norteamericana que o título representa, agora que se comemora século e meio sobre o momento em que aos primeiros escravos foi permitida a experiência humana, a 19 de junho de 1865. Uma indelével impressão digital (profundamente analógica na sua sabedoria anímica, informada tanto na erudição norteamericana do século passado como nas sementes dos blues oitocentistas ou na perene modernidade do spiritual jazz) que imprime nas teclas (pretas e brancas em cabal harmonia) um lirismo orgulhoso com a matéria ética e estética sobre a qual floresce e progride. Espiritualidade e política como uma história de fé, esperança e caridade, poeticamente contada por Stanley Cowell, co-fundador da seminal Strata East e um dos mais ostracizados estilistas do piano ainda em atividade (ainda que mais académica do que artística), numa obra tão subtil quanto deslumbrante. Tão simples como a respiração, tão complexo como a sobrevivência.
Bruno Bènard-Guedes
disco “Juneteenth”, de Stanley Cowell
Vision Fugitive / import. Flur, 2015
texto originalmente publicado no Jornal de Letras n.º 1168 de 8 julho 2015