Não se sabendo bem em que momento desapareceram bassus e sextus do dramático segundo volume, publicado em 1603, de motetos sacros de Carlo Gesualdo (1560? / 1613) para seis e sete vozes – e em consequência do profundo isolamento do compositor na sua última década de vida, uma fase de intensa tortura física, psicológica e espiritual -, presume-se que a obra esteja há 400 anos por cantar. Assinalando a efeméride, o compositor e maestro James Wood, diretor do Vocalconsort Berlin, e especialista em música renascentista e contemporânea – com ênfase num capítulo, o microtonal, curiosamente comum a ambos os períodos -, propõe um fascinante exercício de reconstrução estilística, completando as vozes em falta (as suas reflexões estão disponíveis aqui) numa aproximação, dentro do possível, àquilo que a biologia trataria como regeneração celular ou, num conceito ciclicamente em voga (e, no caso, bem a propósito), a filosofia relembraria enquanto mimese. Numa manutenção dos elementos centrais à conceção musical do príncipe Gesualdo de Venosa – que, no seu modo mais maneirista e sadomasoquista, imortalizou o acompanhamento metafórico do texto através de uma série de intervalos melodicamente extorsionários e de um cromatismo absolutamente expressionista, a par de técnicas que no século XX foram tidas, de forma extravagante, como precursoras de toda uma crise tonal –, esta é uma arte dilacerada pela culpa e por um desígnio penitencial, e (a par dos derradeiros madrigais), na ótica do pecador, praticamente testamentária.
disco “Carlo Gesualdo – Sacrae cantiones; Liber secundus”, de James Wood e Vocalconsort Berlin
Harmonia Mundi, 2013
João Santos