“Filme socialismo”, de Jean-Luc Godard

Experimento formal, ensaio de desconstrução visual, incursão provocatória e movimento de assincronias, “Filme socialismo” é um exercício de collage e montagem em que Jean-Luc Godard, a partir das infinitas possibilidades do dispositivo cinematográfico (que sempre esmiuçou com singular acutilância, pela subversão dos seus lugares comuns), interpela o espetador para uma reflexão sobre a contemporaneidade, a vacuidade das semânticas modernas e o destino de uma Europa em ruínas. No mar Mediterrâneo – esse berço centrípeto de uma civilização hoje decadente –, o cineasta faz navegar um cruzeiro com personagens anónimas, de múltiplas nacionalidades, que discorrem memórias e discursos fragmentados (que Godard toma de empréstimo a Benjamin, Derrida, Braudel, Beckett, Goethe, Heidegger, Shakespeare,…), unindo-os a outros vultos, inominados, diametralmente imersos na imagem mediática. Egito, Palestina, Odessa, Hellas, Nápoles e Barcelona são os seis destinos genesíacos em que o cruzeiro aporta e aos quais se regressa – um círculo concetual que Godard traça, durante toda a peça, e remata, no seu final. Por entre recordações de artefactos perdidos e problematizações éticas e protofilosóficas, desfilam rostos, palavras, linguagens e línguas (a francesa, a alemã, as árabes), e denuncia-se o absurdo da guerra, os terrores do Holocausto e as incongruências de um mundo que já não sabe pensar a arte à revelia da moeda – onde, por fim, tudo se licencia. Suspensas as narrativas, Godard pergunta, em jeito bíblico, “quo vadis Europa?” (“onde vais Europa?”), para responder: “hell as”, “hèlas” (o “ai!” francês), ambos incisivos jogos de palavras para “Hellas” (a Hélade de Sófocles e Péricles). O que as coisas são (como são), para onde vamos e a (nossa) humanidade são os capitais segmentos de “Filme socialismo”, em que Godard desloca também o olhar para a instituição familiar (no espaço improvável de uma bomba de gasolina guardada por um lama), os valores da pátria francesa e a velha Europa de “As bodas de Fígaro”. Caoticidade (des)combinada num soberbo mosaico de citações – ao jeito da excelência de “História(s) do cinema”, obra produzida entre 1988 e 1998 -, em “Filme socialismo” Godard recupera os primórdios da nossa identidade comum, Ulisses, a escadaria de Odessa de Eisenstein, as lembranças da Nápoles deteriorada, os tumultos da Guerra Civil Espanhola,… Tudo para confrontar a Europa – nesta era de falência dos grandes sistemas democráticos – com aquilo em que se tornou: “Vemo-nos na guerra como num espelho”. “Filme socialismo”, disponível a partir desta primavera no mercado português de dvd, é um trabalho que evidencia a inigualável lucidez do 80.º decénio de Jean-Luc Godard. E um filme rigorosamente impar.

dvd “Filme socialismo” [“Film socialisme”], de Jean-Luc Godard, com Patti Smith, Alain Badiou,…
Midas Filmes, 2011 / 2012

 

João Lopes:
Incontornável assombramento: Jean-Luc Godard rodou “Filme socialismo” no paquete Costa Concordia, em 2010, cerca de dois anos antes do seu afundamento. De facto, o cruzeiro que ele filma é menos uma viagem de lazer e mais uma deambulação angustiada pelos impasses existenciais do nosso tempo. Mais do que isso: na sua elaborada fragmentação, este é um objeto cinematográfico que vislumbra ainda a unidade perdida de uma Europa que, noutros tempos, soube cultivar o gosto da utopia. É, além do mais, o primeiro filme de Godard totalmente filmado em video (HD), a provar que é preciso continuar a aguardar a morte do cinema… com otimismo. texto no Sound + Vision [ 1 ]   texto no Sound + Vision [ 2 ]   texto no Sound + Vision [ 3 ]   texto no Sound + Vision [ 4 ]

 

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