A propósito de Vladimir Martynov, David Harrington – violinista, fundador e diretor artístico do Kronos Quartet – disse que a sua música parece refletir e absorver a humanidade de uma forma singularmente bela. O Kronos Quartet é um dos mais requintados e exigentes quartetos de cordas da música contemporânea, cuja transversalidade de repertório perpassa a música clássica, a minimal, o jazz, folclores distintos, bandas sonoras e uma miríade de colaborações com outros compositores e artistas, entre os quais se destacam os nomes de Steve Reich, Terry Riley, Philip Glass, Tom Waits, Allen Ginsberg ou Astor Piazzolla. Neste seu recentíssimo e paradigmático registo, tocam três peças especialmente escritas ou reequacionadas por Vladimir Martynov para os seus dois violinos, viola e violoncelo. O percurso deste notável compositor contemporâneo (nascido em 1946) fez-se entre a educação clássica no conservatório e as experimentações da música serial, quando, no final dos anos 70, se começou a dedicar à preservação (pela incessante reconfiguração das suas possibilidades sonoras) do canto ortodoxo russo e da música de câmara medieval. “Music of Vladimir Martynov” traz, na sua imaterialidade, temas a que a obra do autor se foi dedicando: as virtudes e bênçãos cristãs, delicadamente enunciadas pelas cordas dos violinos no tema de abertura, “The beatitudes”. Martynov procura o sentido da totalidade, a indistinção entre o “eu” e o mundo, como aquela que se alcança numa experiência transcendental. Para tal, replica a infinitude do círculo, repete e suspende o tempo, ou homenageia o romântico Schubert e a sua sinfonia inacabada. Porém, se Martynov pode ludibriar o tempo, apoderando-se dele pela composição, não pode recuperar aquele que se dissipa – mas este é também um disco em que o compositor põe nas cordas de Harrington, Sherba, Dutt e Zeigler uma homenagem ao pai, a quem deve a sua afinidade à música (era musicólogo e biógrafo de grandes compositores russos, como Shostakovich), que velou até ao último suspiro. “Der abschied” (“A despedida”), referência a “Das lied von der erde”, de Gustav Mahler, é uma ofegante incursão pelo inspirar e pelo expirar do violoncelo, uma imitação da angústia da respiração que se evolará na morte, mas que o Kronos Quartet, pela perfeita temperança das cordas, torna bela, conseguindo fazer da vigília até a esse sono eterno uma premissa sonora que se quer voltar a ouvir e a fruir, como se canta na peça de Mahler: “Ich sehne mich, o freund, an deiner seite / Die schönheit dieses abends zu geneissen” (“Eu anseio, ó meu amigo, desfrutar ao teu lado / Da beleza deste anoitecer”).
disco “Music of Vladimir Martynov”, do Kronos Quartet
Nonesuch / Warner, 2012