Em 1972, Eric Rohmer concluiu a sua tese sobre “Fausto” (1926), de Friedrich W. Murnau, intitulando-a: “A organização do espaço no ‘Fausto’ de Murnau”. O título envolve uma sugestão eminentemente pedagógica: a história do homem que vendeu a alma ao Diabo desafia todas as coordenadas do espaço, todos os territórios da narrativa. Que é como quem diz: obriga-nos a rever e reavaliar a suposta consistência do mundo e o modo como, dentro dele, estabelecemos as relações a que chamamos humanas. Quase 90 anos depois de Murnau, e cerca de dois séculos depois de Goethe, Sokurov faz um filme em que Fausto e o seu companheiro diabólico atravessam um espaço insólito: a sua crueza material (apetece dizer: documental) vai dando lugar a um assombramento em que a evidência mais imediata já está do lado do pesadelo. Não admira que Sokurov tenha arquitetado, afinal, um prodigioso ensaio sobre o poder do dinheiro. Nada do que acontece neste “Fausto” escapa às medidas que o dinheiro instaura, consagrando as equivalências mais demoníacas. É, em termos narrativos, uma reinvenção ousada da lenda e da escrita. Resulta, no plano simbólico, uma parábola sarcástica que, ponto por ponto, parece “reproduzir” o nosso mundo. Saudemos, por isso, este Fausto nosso semelhante, na virtude imaginada e na obstinação do pecado. E rezemos pela libertação cinematográfica.
João Lopes
11 abril [estreia nacional]
filme “Fausto” [“Faust”], de Aleksandr Sokurov, com Johannes Zeiler, Anton Adasinsky,…
Leopardo Filmes, 2011 / 2013