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“Coin Coin, chapter two – Mississippi moonchile”, de Matana Roberts

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Muito para além de todo o jazz, muito para além de toda a música, testemunha-se aqui uma prelativa e singularíssima parábola de arte como religião, como política ou como história social. Ancestral e vanguardista, cerebral e apiedado, espiritual e carnal, telúrico e celífero, avassalador libelo contra o branqueamento da memória, celebratório da vida, da verdade, da intangibilidade ontológica, dos labirintos da demência e do amor, evocação de uma cruel liberdade como garantia de perenidade ascética – assim é o fractal edifício escorado no segundo de 12 tomos prometidos para esta suite orquestral de metajazz, que desenvolve uma inexorável narrativa (tangencialmente autobiográfica?) cartografada em torno dos imanentes escombros morais da escravatura crivados nas gerações que se lhe seguiriam, até hoje, até ao futuro. Se a fundação de “Coin Coin, chapter one: Gens de couleur libres” (2011) era um grito de inefável profundidade catártica, a colapsar, minado de dor intoleravelmente visceral, a do irrepreensível novo capítulo é jornada irredutível de exorcismo e redenção, mais intimista, espectral, lacónico, reflexivo, (con)centrado. Uma tour de force dramática (no duplo sentido) capaz de elevar novamente a música – 44 anos depois dessoutra obra-prima escrita por Mary Maria Parks e assinada por Albert Ayler – à dimensão de “healing force of the universe”.

Bruno Bènard-Guedes

disco “Coin Coin, chapter two: Mississippi moonchile”, de Matana Roberts
Constellation Records / Popstock, 2013

 

texto originalmente publicado no Jornal de Letras nº 1133, de 5 março 2014

 

 

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