Um par de anos volvidos sobre a edição do surpreendente “Camera obscura” (Inner Records, 2010), o díptico da prodigiosa Sara Serpa com o lendário Ran Blake regressa com “Aurora”, agora mesmo lançado com o selo da portuguesa Clean Feed e que fixa discograficamente o memorável concerto da dupla na Culturgest de Lisboa em maio deste ano. As interpretações de Sara Serpa, pela ágil plasticidade da sua voz, parecem oscilar entre uma implacável autoridade, uma inocência quase infantil, e um lamento murmurante que nos convida ao ritual. E o piano do génio norteamericano, que vai desenhando a moldura, parece impedir que a voz da cantora portuguesa se alastre, mantendo-a numérica e indicando o norte com a irreverência que lhe é tão própria. A solidez do que aqui se constrói parece ser intrínseca à imprevisibilidade da errância. Os 12 temas que compõem o álbum fazem deste uma obra eclética e volúvel, cuja harmonia e coesão são predicados de uma intimidade muito pessoal que nunca se ausenta. O cinema de Fritz Lang e de Alfred Hitchcock, alguns dos mais desafiantes musicais da Broadway, sombras colossais como a de Gustav Mahler, ou até a trágica e eterna “Strange fruit” fazem-se ouvir num todo sem fissuras ou hesitações. Talvez por isso, esse “cansaço de sentir que quanto faço não é feito só por mim” de que fala o poema de Luís de Macedo, outrora eternizado na voz de Amália, que, com Sara Serpa, adquire outros contornos que não os da saudade sombria do fado. “Aurora” parece mesmo arriscar uma celebração de tudo aquilo que, pela música, se torna coletivo, numa constante metamorfose do que se sabe que, no limite, é irrepetível.
disco “Aurora”, de Sara Serpa e Ran Blake
Clean Feed / Trem Azul, 2012