Andrei Ujica trabalhou em mais de 260 horas de filme do arquivo oficial romeno para produzir aquilo que vemos na marcante obra documental e cinematográfica que é “Autobiografia de Nicolae Ceausescu”. O líder que foi o rosto do partido comunista da Roménia durante mais de 20 anos (desde 1967 até à data da sua execução, no dia 25 de dezembro de 1989), e que fez deste país uma república independente do domínio da União Soviética, tinha com a imagem uma relação quase fetichista, tal como a maior parte dos ditadores. O espólio fílmico do seu regime é imenso, e Andrei Ujica alinhava, num impressionante trabalho de “corte e costura”, sem recorrer a quaisquer informações para além das que estão registadas nestas imagens, os frames que fizeram a história de megalomania de um homem que adorava ser filmado. Em “Autobiografia de Nicolae Ceausescu”, o realizador parece fazer a autognose que este líder nunca fez: parte das filmagens do seu julgamento (que o mundo viu ao vivo na televisão), e passa em revista uma série de pontos “altos” da história da sua vida e da história da Roménia. Ujica, que já em “Videogramas de uma revolução” e “Out of the present” abordara a questão da queda do comunismo no seu país, recupera imagens de propaganda política, gravações de cerimónias protocolares e de encontros oficiais (com Charles de Gaulles, Richard Nixon, Jimmy Carter, Isabel II, Mao Tsé-Tung ou a indescritível e monumental visita a Kim Il-Sung), bem como alguns filmes da vida privada de Ceausescu, como se procurasse dar a ver ao próprio o seu declínio e a transformação de um homem aparentemente pacato no ditador atroz que a história tristemente recorda. “Autobiografia de Nicolae Ceausescu” é um documento de inestimável valor histórico (e artístico), mas também um paradigmático jogo de montagem, prova cabal de como uma determinada combinação de imagens pode questionar e inverter o seu propósito original.
dvd “Autobiografia de Nicolae Ceausescu” [“Autobiografia lui Nicolae Ceausescu”], de Andrei Ujica
Clap Filmes, 2010 / 2011
João Eduardo Ferreira:
Para realizar este filme extraordinário, Andrei Ujica conhecia o material que manuseava como a palma das suas mãos, sabendo exatamente o fim a que se propunha. Só assim se compreende o seu título e o facto da história não chegar ao seu desfecho irremediável. Uma composição estética que faz o espetador espantar-se com o inesperado de uma retrospetiva. Essencial a comparação circunstancial com “O triunfo da vontade”, de Leni Riefenstahl (1935).
site de “Autobiografia de Nicolae Ceausescu”