“Worst summer ever” e “Those who throw objects at the crocodiles will be asked to retrieve them”, de Bruno Pernadas [entrevista]

As sementes jazzísticas cultivadas em “Worst summer ever” são amanhadas representações telúricas (e algo terra-a-terra…), rastejantes compromissos de um amadurecimento que poderá vir a desenvolver frondosas e frutuosas pernadas na árvore genealógica criativa deste promitente esteta. Mas é em “Those who throw objects at the crocodiles will be asked to retrieve them” que o vórtice de sentidos musicais instruídos em louváveis expressões da galáxia pop moderna realmente descola rumo a um potencial infinito celígena. Artesão sónico digno de nota e atenção futura, Bruno Pernadas é o fecundo maestro aglutinador cujo empenhado labor detalhista é apreciável nestes dois volumes. Ou, já nesta 6ª feira, 25 de novembro, no palco do Teatro Tivoli (no âmbito do festival Mexefest). Ou na troca de ideias que connosco partilhou…

Integra diversos grupos, mas assinando em nome próprio não abdica de se rodear dos mesmos músicos com quem partilha esses coletivos. Que papel desempenha na construção da sua individualidade criativa esse sentido de integração numa comunidade artística?

Bruno Pernadas: Os colegas com quem trabalho têm uma enorme versatilidade musical, são pessoas extremamente dedicadas, respeitam a música que escrevo, de modo que dentro destas circunstâncias o próprio processo de criação sofre várias alterações e influências. Ou seja, no período de composição, produção e arranjos tenho muito presente o facto de estar a escrever para determinados músicos, imagino a forma como vão reagir às ideias propostas e, no caso do grupo de jazz, a forma como a sua participação fará a música ganhar um desenvolvimento mais próximo do pensamento coletivo e da interação em tempo real.

Estes dois discos foram gravados e pensados autonomamente, e só o acaso os juntou numa agenda editorial comum – mas ambos abrem com ideias sonoras que parecem transportar em si um possível legado do outro. Enquanto escultor destes universos sonoros tão particulares, sente que – fora da sua cabeça e do seu coração – pode haver algum tipo de vaso comunicante entre eles, viabilizando uma transição muito natural quando ouvidos consecutivamente, em loop?

Bruno Pernadas: Sim, claramente. O fator melódico e as soluções harmónicas – são caraterísticas que fazem parte da mesma identidade musical, sem dúvida. Percebo que não seja muito claro ou transparente identificar quais os momentos que provam este facto, mas a verdade é que as pessoas que me conhecem bem a nível musical identificam com facilidade que determinada peça musical ou canção foi composta por mim, precisamente por estarem muito próximas destas duas caraterísticas tão importantes, que no fundo definem a personalidade musical de cada intérprete ou compositor.

Ainda assim, apesar da salutar promiscuidade formal que a sua música promove, fez questão de separar as águas… Enquanto compositor, acha que isso pode ser uma mais valia para ambas as áreas? Até que ponto lhe interessam os contágios entre as várias escolas do jazz e as diversas músicas populares?

Bruno Pernadas: Sim, no fundo o contágio de várias tendências musicais é que torna o processo interessante e misterioso, que no meu caso não está presente como ferramenta de composição mas como algo muito natural e instintivo que fui descobrindo ao longo dos anos com a criação musical. Foi precisamente esse contágio que descreve na questão que fez com que a música ocidental evoluísse de forma interessante e significativa, foi por alguns compositores procurarem inserir nas suas composições elementos de outras culturas que contribuiu para um novo pensamento musical e linguagem fora da zona de conforto. Em resumo, uma nova forma de pensar sobre o objeto de criação.

O tom dominante em “Worst summer ever” assenta numa matriz tradicional de jazz europeu, subvertendo-a pontualmente de fora para dentro, nomeadamente com interferências de rock ou de eletrónica. Sente-se suficientemente comprometido com o meio jazzístico para defender que esse pode ser o seu contributo para a evolução do género? Ou prefere pensar neste seu trabalho como o de um outsider que apenas se quer divertir com a música que a sua imaginação permite?

Bruno Pernadas: Nesse sentido, o meu caso não é particular, imensos grupos e compositores misturam a música eletrónica e a música rock no contexto da música jazz. Nos últimos anos, tivemos vários exemplos concretos de como esta transformação se traduz em algo saudável, fresco e interessante, como no caso do grupo Bad Plus, Steve Lehman, Dave Douglas, Magic Malik, Carlos Barretto, Carlos Bica, Michel Portal, Louis Sclavis, entre muitos outros. Identifico-me bastante com esta abordagem na música jazz, e por essa razão foi muito natural incluir essas influências na música que criei para o disco “Worst summer ever”. De qualquer forma, também me identifico com a segunda opção. Como alguém escreveu em tempos, “there is no life I know to compare with pure imagination” (“Pure imagination”, Leslie Bricusse e Anthony Newley, 1971).

Mesmo sabendo que o jazz já contém na sua natureza um desejo eternamente insaciável de ousadia e invenção – contrariamente à pop -, não podemos deixar de sentir uma maior sede de aventura neste seu novo disco “pop” do que neste seu novo disco “jazz”. Terá a pop mais caminhos ainda por desbravar na sua cabeça? Ou será essa uma forma de mostrar um maior respeito pela história do jazz que o educou enquanto melómano e enquanto músico?

Bruno Pernadas: Concordo, mas foi apenas uma situação circunstancial, ou seja, muitas das músicas que fazem parte do disco “Worst summer ever” foram criadas há algum tempo, algumas em 2008. São temas com os quais tenho uma relação de amizade que se traduz em memórias de um tempo passado, de que a nível emocional já guardo alguma distância, não pertencem de todo à abordagem que pretendo trabalhar no futuro na música jazz. Tenho o maior respeito pela história do jazz e a sua evolução, mas este disco não foi criado com esse intuito.

Afirmou numa entrevista recente que “Worst summer ever” é um disco “muito terra, muito chão”. Podemos, seguindo essa analogia, considerar que “Those who throw objects…” é um disco “muito céu, muito espaço”?

Bruno Pernadas: Sim, podemos e devemos.

 

Bruno Bènard-Guedes

discos “Worst summer ever” e “Those who throw objects at the crocodiles will be asked to retrieve them”, de Bruno Pernadas
ambos Pataca Discos, 2016

 

versão integral de uma entrevista parcialmente publicada no Jornal de Letras n.º 1204, de 23 novembro 2016

 



Leave a Reply

Fill in your details below or click an icon to log in:

WordPress.com Logo

You are commenting using your WordPress.com account. Log Out /  Change )

Google photo

You are commenting using your Google account. Log Out /  Change )

Twitter picture

You are commenting using your Twitter account. Log Out /  Change )

Facebook photo

You are commenting using your Facebook account. Log Out /  Change )

Connecting to %s