“Desire & freedom”, de Rodrigo Amado Motion Trio [entrevista]

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Sensivelmente tudo na confluente prática artística do saxofonista (e fotógrafo) português Rodrigo Amado tem inerente a si uma acurada preleção narrativa, assente num ideário de reflexão e de ação, do momento e do movimento, do dever e do devir, incontinente continuum ético e estético de exceção. Seguramente não por acaso, é esse “movimento” (perpétuo) que nomeia a sua mais arraigada irmandade criativa: o Motion Trio. Sucedendo aos quatro assombrosos registos por si publicados no último par de anos (os viscerais “The freedom principle” e “Live in Lisbon”, dois prementes exercícios desse trio com o ilustríssimo precetor Peter Evans, a homónima estreia do expressionista Wire Quartet e o avassalador “This is our language”, com os exímios Joe McPhee, Kent Kessler e Chris Corsano), faz editar na próxima semana o longa duração “Desire & freedom”, cabal testemunho da eloquente maturidade deste projeto, revelando o mais íntegro Rodrigo Amado, o mais integral Gabriel Ferrandini e o mais integrado Miguel Mira. Uma dinâmica discursiva sucintamente traduzida pelo músico na conversa que se segue.

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fotografia: Geert Vandepoele

 

Há já mais de dez anos que toca e grava com músicos americanos e europeus de inegável prestígio, publicando em algumas das mais relevantes editoras de jazz mundiais. Mas os quatro álbuns que editou em 2014 e 2015 funcionaram, de certa forma, como a confirmação definitiva da notável reputação que atualmente goza junto da crítica e do público mais atento a nível internacional. Sente que estes foram discos fulcrais para a afirmação global do seu trabalho? Em que sentido?

Rodrigo Amado: Sim, para mim é bem clara uma evolução acentuada em termos de consistência e profundidade musical a acontecer a partir da edição de “The freedom principle” e “Live in Lisbon”, ambos gravados com Peter Evans. Estes foram sem dúvida discos fulcrais para a afirmação do meu trabalho e, mais particularmente, do trabalho do Motion Trio, por termos vencido esse desafio, o do confronto musical com Peter Evans que é, há já alguns anos, um dos mais desafiantes improvisadores mundiais. O confronto com o Peter significou um enorme risco e, simultaneamente, um fator de crescimento exponencial, a nível artístico e mesmo pessoal. Esse tem sido aliás um fator constante no meu percurso, o encontro com grandes músicos, bem melhores e mais experientes do que eu, e a forma como esses encontros deixam marcas indeléveis de crescimento e evolução. Agora como antes, penso que é essa a grande forma de aprendizagem. No caso do quarteto com o Joe McPhee, Kent Kessler e Chris Corsano, esse processo foi ainda mais acentuado, embora o confronto tenha sido menos “violento” do que aquele que aconteceu com o Peter. No caso do Peter, pode dizer-se que houve uma queimadura, quando no quarteto aconteceu antes uma imersão profunda.

Na prática, a responsabilidade de ser, em muitos circuitos internacionais, o mais reconhecido nome do jazz português influencia de alguma forma a atitude geral que tem perante a sua arte?

Rodrigo Amado: Os sinais fortes de reconhecimento do meu trabalho originam invariavelmente um reforço do sentido de responsabilidade. Esta é uma responsabilidade que se afirma sobretudo perante mim próprio e é uma responsabilidade que se transforma em vontade e desejo de trabalhar cada vez mais intensamente. Acho que nunca estive tão motivado e focado como estou agora.

Tem mostrado um particular interesse em maturar a sua individualidade criativa desenvolvendo cenários coletivos em ciclos ou períodos mais ou menos regulares e duradouros (embora com salutar liberdade e de forma não estanque): com os Lisbon Improvisation Players, com Ken Filiano e Carlos Zíngaro, com Kent Kessler e Paal Nilssen-Love, com o Motion Trio, com Jeb Bishop, com Peter Evans, com Chris Corsano, possivelmente com o ainda recente Wire Quartet,… É assim que deseja continuar a crescer musicalmente?

Rodrigo Amado: Sim, sem dúvida. Essa visão cíclica de evolução de diferentes projetos é uma parte fulcral do meu trabalho. Estou permanentemente à procura de oportunidades para regressar ao registo de formações com as quais já trabalhei. Penso que esse é um enorme desafio e obriga-nos a confrontar as nossas próprias limitações e a encontrar formas de as superar. Uma das formações que gostaria de registar novamente num futuro próximo é o trio com o Kessler e o Nilssen-Love. Sinto uma enorme curiosidade de descobrir em que ponto estaremos agora, passados já oito anos desde o nosso último encontro. De resto, espero continuar a trabalhar com o Motion Trio durante muitos mais anos. Serão também editados em breve o novo álbum de Wire Quartet e um duo com o baterista Chris Corsano. No fundo, tratam-se de novas perspetivas sobre a mesma matéria.

Que tipo de possibilidades gostaria ainda de experimentar num contexto eminentemente colaborativo?

Rodrigo Amado: A pesquisa de novas colaborações é algo que nunca acaba e que está ligada fundamentalmente à minha evolução como espetador e ouvinte da cena musical criativa que nos rodeia. Em cada determinado momento há um conjunto de músicos cujo pensamento musical me intriga, me desafia. Neste momento, alguns desses músicos são Craig Taborn, Barry Altschul, Wadada Leo Smith ou Nate Wooley, entre muitos outros. Em julho do próximo ano estreio também uma nova formação com três dos mais importantes músicos noruegueses – Thomas Johansson, Jon Rune Strøm e Gard Nilssen. Para além disso, fora do contexto do jazz e da música improvisada, estou sempre atento a oportunidades para colaborar com artistas de outras áreas, como é o caso das gravações que estou a realizar com o Halloween, um dos mais fascinantes rapers nacionais.

Depois do disco de estreia, o Motion Trio publicou dois álbuns (um em estúdio e outro ao vivo) com Jeb Bishop, repetindo a fórmula com Peter Evans. E agora regressa com um longa duração sem convidados… Sente que, pela singularidade da sua formação, este é um trio particularmente versátil e aberto a esse tipo de mutações?

Rodrigo Amado: O Motion Trio tornou-se nos últimos anos a peça chave da minha atividade musical. O trabalho intenso que temos desenvolvido, com base numa prática quase diária e uma permanente reflexão musical conjunta, tem sido determinante na minha evolução. Curioso é que esse trabalho seja intuitivamente orientado para uma cada vez maior flexibilidade e adaptabilidade do trio. Cada nova colaboração provoca nele uma verdadeira metamorfose, tornando bastante imprevisíveis os resultados, o que para nós é bastante interessante. Por outro lado, torna-se também fundamental uma avaliação periódica do estado do trio na sua forma original, até para avaliar o impacto de anteriores colaborações. Foi o que fizemos agora no novo “Desire & freedom”.

Partindo de uma citação de Jack Parsons, os títulos deste novo álbum do Motion Trio aludem à ideia (já anteriormente aflorada nos seus discos) da liberdade, na dupla aceção de “freedom” ou “liberty” (mas também de responsabilidade…) – o que remete, por sua vez, para o tema da linguagem e do inefável, igualmente recorrente nos seus programas discográficos. Que valor atribui à nomenclatura de cada peça que compõe?

Rodrigo Amado: Para mim, a fase pós-gravação, o período dedicado à escuta e seleção do que foi gravado, é determinante e tão importante como a própria gravação. É durante este período que o futuro álbum ganha uma personalidade, uma energia própria, e é também nessa altura que são tomadas decisões sobre o nome do disco e das faixas, sobre a capa e sobre um conceito intangível que une todos estes elementos. Penso que o facto de todos os meus discos terem uma identidade fortíssima em termos de música / grafismo / palavras lhes tem vindo a dar um maior impacto e visibilidade. A minha única preocupação é que todos os elementos de um novo disco sejam importantes ou relevantes para mim, que me inspirem. Mas acredito que dessa forma se poderão tornar relevantes também para os outros. Durante o período pós-gravação de “Desire & freedom”, o Gabriel falou-nos de uma entrevista do Bill Evans em que ele referia três elementos fundamentais para a sua música – liberdade, desejo e responsabilidade. Isso foi algo que me impactou profundamente, pois senti uma forte ligação àquilo que tínhamos gravado e ao momento que o trio atravessava. Posteriormente, também vindo do Gabriel (o mais inquieto pesquisador do trio), chegou-me às mãos o livro do Jack Parsons, cuja leitura me fascinou de imediato. Muitas das suas ideias sobre religião, liberdade, política, amor e magia, senti-as como sendo minhas, e a noção de liberdade como uma espada de dois gumes – sendo um a liberdade e o outro a responsabilidade – fechou para mim o conceito do álbum.

Bruno Bènard-Guedes

disco “Desire & freedom”, de Rodrigo Amado Motion Trio
Not Two / DistriJazz, 2016

 

versão integral de uma entrevista parcialmente publicada no Jornal de Letras n.º 1201, de 12 outubro 2016

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