Mais do que em qualquer outro instante do seu viés fonográfico, podemos afiançar que “isto” não é exatamente “isso”; é sensivelmente outra coisa… Madeleine Peyroux sempre foi outra coisa. Outrem. Distinta. Uma identidade diversa. Uma mutante alteridade própria. Ou um impróprio ser e não ser alheio – que quando se apropria do cancioneiro norte americano é como ninguém. Rigorosamente desigual. Provam-no, com um paradoxal ensimesmamento particularmente irrepreensível, estes “Secular hymns”, salmos laicos eternizados ao vivo numa igreja inglesa do século XII (pela sua imaculada e perenal acústica, clarifica…), como cândida, frugal e ascética oração à mundaneidade dos nossos quotidianos, das nossas relações, das nossas vidas. Prodígio de tempo e de espaço harmónico, o evo destes 33 minutos concentra o mais laudável do seu romantismo expressionista aplicado a um espartano e voluptuoso labor de reinvenção de canções (abençoadamente sem veleidades autorais, como as que lhe têm desvirtuado anteriores tomos da discografia…). Madeleine Peyroux sempre foi outra coisa. E este tango de Tom Waits é agora outra coisa, este funk de Allen Toussaint é agora outra coisa, este gospel de Sister Rosetta Tharpe é agora outra coisa, esta dub poetry de Linton Kwesi Johnson é agora outra coisa, estes blues de Willie Dixon são agora outra coisa. Este disco é outra coisa. Madeleine Peyroux é outra coisa. Madeleine Peyroux é “somethin’ else” (como reza o título da obra prima de Cannonball Adderley…). No duplo sentido… Ou seja, uma coisa e outra coisa. Ao mesmo tempo. Agora.
Bruno Bènard-Guedes
disco “Secular hymns”, de Madeleine Peyroux
Impulse! / Universal, 2016
texto originalmente publicado no Jornal de Letras n.º 1200, de 28 setembro 2016