“Great spirit”, de William Parker e Raining On The Moon, e “William Parker – Stan’s hat flapping in the wind”, de Lisa Sokolov e Cooper-Moore

capa william parker great spirit

Quanto vale uma canção no jazz não conformista do século XXI? Como se ergue uma voz narrativa num contexto desafiante e crescentemente abstrato? Que potencial de ação estética resta aos cantores para lá do american songbook e de umas quantas derivações mais ou menos marginais? Na sua sagaz discrição, William Parker tem sido um raro e paradigmático respigador nesta matéria, ensaiando responder a estas dúvidas (e, pelo caminho, formulando uma miríade de questões análogas), conjugando uma identidade deveras singular para o cancioneiro que ousou medrar em redor do jazz de vocação espiritual. É essa a premissa que une e acrescenta sentido histórico às audições das suas releituras de Curtis Mayfield (“I plan to stay a believer”, 2010) e Duke Ellington (“Essence of Ellington”, 2012), dos álbuns partilhados com vocalistas como Lisa Sokolov ou Ellen Christi (ambas em “Song cycle”, 1996), com os rappers Beans e HPrizm (“Knives from heaven”, 2011) ou com o poeta David Budbill (“Zen mountains, zen streets”, 1999), mas sobretudo no quadro do projeto Raining On The Moon. Publicado em 2002 em nome de William Parker Quartet featuring Leena Conquest, o CD “Raining on the moon” é provavelmente, ainda hoje, a obra pinacular do jazz cantado do lado de cá do novo século – e recordamo-lo com especial enlevo na sua imaculada celebração conduzida no palco do Teatro Gil Vicente, Coimbra, em janeiro de 2003. A glória conceptual do disco terá incitado o seu mentor a prolongar no tempo e no espaço criativo o respetivo programa devocional, assumido-o posteriormente como a banda que, agregando o piano de Eri Yamamoto ao quinteto original (Hamid Drake, Rob Brown, Lewis Barnes, além de Parker e Conquest), gravaria em janeiro de 2007 o superlativo longa duração “Corn meal dance”, de cujas sessões resultaria igualmente o intangível evangelho que ouvimos no recente “Great spirit”: da redenção e consagração do nosso desígnio ontológico comum e sua frugal e poética sublimação.

capa william parker stan s hat flapping in the wind

Por seu turno, apresentando 19 árias do espetáculo musical que tem vindo a elaborar há mais de 20 anos, “Stan’s hat flapping in the wind”, acabado de editar, é uma das mais cabais evidências do amor pelo formato que o contrabaixista nutre: interpretado por Lisa Sokolov e pelo pianista Cooper-Moore, este tratado de fé, esperança e caridade – sobre a vida, a verdade, a natureza, o sagrado e a morte – promove categoricamente a prática composicional de Parker a um índice totémico de excelência. A eternidade começa aqui.

Bruno Bènard-Guedes

disco “Great spirit”, de William Parker e Raining On The Moon
Aum Fidelity / DistriJazz, 2015

disco “William Parker – Stan’s hat flapping in the wind”, de Lisa Sokolov e Cooper-Moore
Centering Records / DistriJazz, 2016

 

texto originalmente publicado no Jornal de Letras n.º 1189, de 27 abril 2016

 



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