“Atlas do corpo e da imaginação”, de Gonçalo M. Tavares e Os Espacialistas

capa goncalo m tavares atlas do corpo e da imaginacao

Geralmente associamos o termo “atlas” à geografia, a mapas, cartas e gráficos. Vêm-nos depois à cabeça, decerto, os atlas do corpo humano e, muito provavelmente, atlas linguísticos e atlas zoológicos. Mas o vocábulo “atlas” designa também a primeira vértebra cervical, na anatomia humana, aquela que sustem o crânio, evocando assim o gigante homónimo da mitologia, o titã Atlas, condenado por Zeus a suster o céu sobre os ombros. Um dos maiores fascínios deste “Atlas do corpo e da imaginação – Teoria, fragmentos e imagens”, agora editado pela Caminho, reside no facto de permitir que nele se entre por onde se quiser (e dele, do mesmo modo, se saia – embora, diga-se, tal nunca mais venha, muito provavelmente, a acontecer…). Posto isto, avise-se o incauto leitor que se avizinham as linhas de leitura de quem começou pelo fim. E começar pelo fim significa ficar a saber que “os apontamentos de Wittgenstein reunidos em ‘Aulas e conversas’ terminam assim: ‘e é tudo, exceto mais confusões’. Recuamos depois para o elenco mapístico dos “Cadernos” de Gonçalo M. Tavares, e para a nota final; descobre-se a dedicatória a Bernardo Sassetti, e as notas de rodapé; e desfilam, ao longo do texto, as imagens fotográficas, criadas pelo coletivo de artistas plásticos Os Espacialistas (Luís Baptista, Diogo Castro, João Cerdeira e Sérgio Serol), para as quais Gonçalo M. Tavares escreveu as legendas. Sem as limitações de género literário, derrogadas das fronteiras clássicas, Gonçalo M. Tavares chama-lhe atlas. Na realidade, é uma obra orgânica, corpórea de humanidade. Metáfora, em estética e essência da cognição, enquanto processo, em camadas sucessivas, espiralizantes, de abertura e fechamento, um puzzle combinatório de infinitos. Aparentemente fragmentário, um itinerário de clareza e interrogação, uma rede caleidoscópica, com tanto de escheriano labirinto quanto de quasi-carrolliana lógica, calcula-se a dificuldade de uma catalogação fechada e emprateleirada. Se teve como ponto de partida uma tese de doutoramento, é uma obra que se assume como ensaístico exercício filosófico de busca e de construção de escrita, ficcional, narrativo, poético até, visual, imagético, sempre exigente e lentamente meta-cognitivo, avassalador na surpresa rápida do toque, descoberta e confronto, leitura do vagaroso prazer de decifrar cada sentido, que nos obriga a parar, e a retomar, a diferentes velocidades. Dizer que é editorialmente esmerado e tematicamente variado será dizer mesmo muito pouco acerca deste “Atlas do corpo e da imaginação”. Ao longo das quatro secções (“O corpo no método”, “O corpo no mundo”, “O corpo no corpo”, “O corpo na imaginação”), encontramos literatura, filosofia, artes, dança, teatro, cinema, ciência e técnica; revisitamos autores como Gaston Bachelard, Ludwig Wittgenstein, Michel Foucault, Hannah Arendt, Roland Barthes, Walter Benjamin, Paul Valéry, Honoré de Balzac, mas também Vergílio Ferreira, Maria Gabriela Llansol, Almada Negreiros ou Clarice Lispector; cruzamos temas como os da identidade, tecnologia, morte e amor, cidade, loucura, racionalidade, alimentação e desejo, todos definidores da essência do pensamento, contemporâneo – intemporal. Sublinhe-se ainda a qualidade e cuidado gráfico, tão sóbrio e inteligente quanto desafiador. Gonçalo M. Tavares é um escritor que não precisa de publicar – nós precisamos que publique, como na maravilhosa analogia de Gianni Rodari, na sua “Gramática da fantasia”, precisamos que seja “a pedra no charco”. “Um pequeno Atlas suportando uma pequena porção de terra”.

Paula Pina

livro “Atlas do corpo e da imaginação – Teoria, fragmentos e imagens”, de Gonçalo M. Tavares [texto] e Os Espacialistas [imagens]
Caminho, 2013

 

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