Sem rede, lê-se. E questiona-se, talvez ignorando os precedentes, se Shorter – quase octogenário, decano do hard bop com Blakey e Miles e da fusão multiculturalista com Weather Report e Milton, e recipiente das homilias conferidas ao jazz mais grífico e salvífico – poderá dispensar assim, tal como insolentemente enunciado, da segurança. Afinal, este seu primeiro álbum em oito anos é, novamente, um disco ao vivo, resultado, quiçá, de uma lógica de consagração endémica a um circuito organizado em torno da glorificação do passado e do qual se exime o risco. Uma ideia, até, reforçada pelo reconhecimento do seu tema inaugural, “Orbits”, em 1967 incluído no iconográfico “Miles smiles”. Mas depressa se dissipam as dúvidas. Se o “Orbits” original foi um exercício ternário relativamente simples com exposição solista alternada (de Miles, Shorter e Herbie Hancock, que, curiosamente, tocou apenas com a mão direita), este, arrancando com um estrepitante ostinato na mão esquerda do pianista Danilo Pérez, capaz de evocar o mais obsessivo na “Musica ricercata” de Ligeti, surge num arranjo estruturalmente esquelético, guiado pela declamação oblongada do soprano de Shorter, debuxando melodia e justapondo, invertendo e interrompendo materiais praticamente até à implosão dos seus constituintes. E daí jamais se recua em “Without a net”. Shorter, Pérez, John Patitucci e Brian Blade – aumentados pelo superlativo quinteto de sopros Imani Winds em “Pegasus”, uma assombrosa peça de câmara em constante fluxo e refluxo – operam num lirismo expurgado, numa dimensão teatral única que reúne esquematismo e poliglotismo, comungantes de um mesmo quadro onírico que instantaneamente traduzem, desmontam e iludem pelos rincões da consciência. A maior das recompensas para o maior dos riscos.
disco “Without a net”, de Wayne Shorter Quartet
Blue Note / EMI, 2013
João Santos
