Ao fim de 20 álbuns na ECM (editora com a qual se confunde, embora raramente surja referido enquanto um dos seus paradigmáticos constituintes), Micus permanece um gestor de perplexidades, capaz de investir solenidade nos materiais mais prosaicos e alimentar uma propensão universalista a partir de práticas essencialmente provinciais. “Panagia”, epíteto para Virgem Maria na Igreja Ortodoxa, é nessa perspetiva exemplar, pois parte para um quadro ecuménico de devoção não especificamente mariana em que se valorizam aspetos matriciais transculturais. Micus, aliás, prossegue aqui um caminho iniciado em “Athos” (1994), igualmente focado em orações bizantinas, em que não enfatiza propriamente a dialética visão que acompanha uma porção significativa da sua produção desde meados dos anos 70 – de que “Darkness and light” (1990) será um evidente modelo –, mas através do qual evoca um mapa para o sagrado, tão utópico quão transnacional, cuja maior ambiguidade será a da diluição do ego numa ação em que a prismática decomposição de códigos musicais de raiz etnográfica depende de escolhas eminentemente pessoais. Empregando voz, cítara bávara, sinos tibetanos e birmaneses, dilruba indiana ou gongo chinês isento de arbitrariedade, as suas composições são, como sempre, portais para uma construção estética meditativa, jamais ameaçada pela inesperada contiguidade dos seus elementos e edificada como um manifesto de tolerância e concórdia, porventura contrário ao sinal dos tempos. Reside aí o seu mistério, a sua crença e a sua eternidade.
disco “Panagia”, de Stephan Micus
ECM / Distrijazz, 2013
João Santos