Mesmo que este derradeiro constituinte da trilogia de álbuns de estúdio gravada por Caetano Veloso com a banda Cê não se desvie dramaticamente dos anteriores, será impossível ignorar-lhe faculdades retroativas. E, de facto, basta observar-lhe um aspeto eminentemente procedimental – o vaporoso experimentalismo da ação de Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado – para o compreender enquanto discreto teorema de aparições. Porque esta música é, tanto quanto possível, um instrumento de transformação do passado. Talvez por isso surja, ao cair do pano, a bela “Gayana”, escrita por Rogério Duarte (um agente crucial para a formação das ideias associadas à tropicália), conjurando o arquétipo da canção de amor, com uma sinuosa melodia em que se explora de maneira expressiva um número mínimo de notas. O efeito – como sempre, com Caetano, todos os colaboradores e contribuintes nos seus discos se transformam num alter-ego seu – sustenta a teoria de que se conclui aqui um processo de redefinição da obra anterior, como se a identidade artística do seu autor, mesmo ao fim de 45 anos de carreira, fosse um ponto de chegada em vez de partida. Numa estilização ainda mais lassa e atmosférica – de que são paradigmas “Estou triste”, “Vinco” ou “Um comunista” –, “Abraçaço” é sábio, subtil e vagamente surreal; no seu intumescimento rítmico – em “A bossa nova é foda”, “Funk melódico” ou “Parabéns” –, revela-se vulcânico, vorticoso e seguramente vicioso. Todo ele, o som de uma banda a seguir ou contrariar correntes de pensamento.
disco “Abraçaço”, de Caetano Veloso
Universal, 2012
João Santos