“Utz” e “Debaixo do sol”, de Bruce Chatwin

Se há autores que transcendem as fileiras dos enformados géneros literários, Bruce Chatwin é certamente um deles. Os dois títulos do escritor britânico recentemente apresentados pela Quetzal são disso um bom exemplo. A propósito de “Utz”, Chatwin disse ser o mais atípico dos seus livros. Redigido em 1987 após um grave colapso de saúde do qual jamais recuperaria completamente, é um conto de intangível beleza sobre a resistência da Velha Europa e a dedicação ao colecionismo. Durante a Guerra Fria, Kaspar Joachim Utz enfrenta o terrível dilema de se exilar ou de ficar na Checoslováquia, onde tem a sua valiosa coleção de porcelanas de Meissen. Um encanto infantil por uma pequena estatueta de Arlequim valeu-lhe uma devoção apaixonada por outras tantas figuras – Madame de Pompadour, Colombina, Brighella, Pantalone, Polichinelo –, que vela com uma sacralidade rara. Em “Utz” reconhecemos o deslumbramento do Chatwin historiador de arte, numa obra delicadamente descritiva dos pequenos prazeres do protagonista: os pormenores das peças, as refeições gourmet ou os passeios pelos bosques para apanhar cogumelos. Mas o texto, não se perigando à ingenuidade, capta habilmente o tédio de ser um angustiado esteta, prisioneiro da porcelana inerte. O segundo destes livros, “Debaixo do sol”, é uma compilação de cartas do autor de “Na Patagónia” que abarca escritos endereçados a amigos, familiares, editores, companheiros de viagem, galeristas, entre 1959, quando trabalhava na leiloeira Sotheby’s, e o ano da sua morte, 1989. Estes registos oferecem um fascinante pano de fundo para uma compreensão mais clara daquilo que foram as inquietações e vivências de Bruce Chatwin. Neste volume, acompanhamos as incursões de um nómada, um errante, um ser humano com uma “avidez pelo desconhecido”, “com uma compulsão para deambular”. Viajamos pelo seu corpus literário e pelas suas rotas – o Nepal, o Haiti, o Afeganistão, o Níger, a Austrália, a Índia, o Líbano, o Tibete ou o Brasil são apenas alguns dos locais a partir dos quais o autor assina –, e conhecemos aqueles com quem se cruzou: nativos caçadores do Saara, do Mali e do Chade; um escocês que veste um kilt, no meio da Patagónia, para jantar; um médico, sem as duas pernas, versado em Mandelstam; ou um eremita que vive de acordo com Thoreau. Mas se há detalhes nestes diários que lemos em paralelo com as suas narrativas de viagem, outros há que nos revelam o universo profissional e pessoal do escritor: as negociações das obras de arte e das publicações dos livros, os encontros de família, as crises conjugais, os relacionamentos paralelos, etc. “Debaixo do sol” conhece aqui a sua primeira edição em Portugal, e é um retrato impecavelmente completo da intrepidez literária e existencial de Bruce Chatwin.

livros “Utz” e “Debaixo do sol”, de Bruce Chatwin
ambos Quetzal, 2012

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