Cresce “espartana, moderna e prática” num mausoléu de antiguidades obsessivamente cuidadas por um homem em tudo a si diametral: “ateniense, vitoriano, esteta”. A norteamericana Alison Bechdel, autora das tiras de banda desenhada “Dykes to watch out for”, revisita neste álbum gráfico a distante e vulnerável relação que manteve com pai, e a formação paralela da sua identidade (absolutamente indissociável das oscilações desse frágil laço) ao longo da infância, da adolescência e do princípio da idade adulta. As memórias aqui transcritas assinalam vivências e episódios familiares, lidos com a ironia, o humor, a clareza e, em certa medida, a angústia de quem procura recuperar um vínculo que se perdeu com uma “morte imbecil”. “Fun home”, para além de uma magnífica obra visual (excelente pelo modo como coaduna a simplicidade do desenho com o alcance da sua representação expressiva, e pelo diálogo fluido entre texto e imagem), é uma narrativa literária em que Bechdel toma a prosa em todo o seu realismo para expor de forma despudorada, não confessional, não panfletária, a descoberta da sua homossexualidade. A rememoração sugerida, feita com a excelência da literatura que une Alison e Bruce Bechdel – evoca-se, lê-se e cita-se Marcel Proust, Oscar Wilde, James Joyce, F. Scott Fitzgerald, Henry James, Albert Camus e tantos outros – é uma tentativa de brilhante complexidade de transferir o texto para a vida, de ler os atos através de “Ulisses” e perceber que talvez os caminhos de pai e filha se convergissem na divergência. Pontuado por estas distintas referências literárias e escrito com uma maestria que lhe faz jus, “Fun home” é um diário de arrojada honestidade emocional.
livro “Fun home”, de Alison Bechdel
Contraponto / Bertrand, 2012
