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“Nada está escrito”, de Manuel Alegre

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Numa “Balada dos aflitos”, Manuel Alegre escreve que “este por certo não é tempo de poesia”. Não tem novas de pão e vinho para um povo assolado por uma crise económica, cultural e identitária, em que pouco mais pode ser do que poeta de um país de bandeira esfarrapada. Mas, neste reino, a quem tudo é recusado e onde tudo se avalia, diz Alegre, figura em que autor e sujeito poético voluntariamente se confundem, “talvez o poema traga um novo dia”. Em “Nada está escrito”, Manuel Alegre faz a apologia da arte poética, essa desconcertante musa que irrompe no silêncio da noite, e reflete sobre o poder do verso (“há versos que rompem como catos / em escarpas desoladas de terras desconhecidas”) e o seu consolo (“há versos que me trazem a estrela errante (…) ou o esplendor de um instante / sempre que estou perdido no caminho”). Poeta da cidade, ao jeito de Baudelaire, Alegre observa as multidões de Lisboa e os olhares perdidos dos transeuntes, onde “nas ruas cheias de gente / vi as pessoas desertas”. Retrato da amargura da sociedade contemporânea, e claro manifesto poético contra a sua tendência autodestrutiva, “Nada está escrito” evoca igualmente o classicismo (a perdida cidade de Troia, Aquiles e Heitor) e reúne composições sobre o amor, Deus e a liberdade (Alegre pensa, inclusive, Auschwitz e a lendária vitória de Jesse Owens nos Jogos Olímpicos de Berlim), temas que perpassam a generalidade da obra do autor. Manuel Alegre confunde-se com a sua biografia, com a sua luta e com Portugal, que transpira por todos os poemas que escreve (como em “A origem do fado”, pois o fado é onde tudo começa, o “antes do antes”, a “história escondida atrás da porta onde se aninha o medo português”). “Mea culpa”, diz em tom irónico e provocador, Alegre é efetivamente tudo isso – “eu é um outro e esse fui eu” –, poeta da liberdade e da melancolia, cujos versos, mesmo quando nada está escrito, já são poemas antes de o serem.

livro “Nada está escrito”, de Manuel Alegre
Dom Quixote, 2012

 

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