“Perpetual gateways”, de Ed Motta

capa ed motta perpetual gateways

Jazz é narrativa e epifania ontológica. A sua gesta é feita de idílios, especulações e contaminações entre o intangível da música popular e da erudição, entre o singular drama cósmico de uma canção e a plural poesia especulativa da metafísica instrumental – mais todo o inefável utópico que os rodeiam… Da periferia para o centro desta insondável odisseia doutrinal, o emérito compositor Ed Motta tem vindo a “perder-se” e a encontrar-se percorrendo vários desses trilhos com um enlevo profundamente referencial e reverencial, mais “à direita” ou mais “à esquerda”, com maior audácia académica ou com maior verve onírica. Mas será eventualmente no seu novíssimo LP que mais exímio e completo se mostra nessa demanda – vibrante, afoita, sincrética, empírica, paradigmática, esplendorosa – de sentidos e lógicas exegéticas, reforçando desse modo a eloquente idiossincrasia da sua vocação para ser um prodigioso e imaculado prestidigitador da arte sonora. “Perpetual gateways” revela-se uma espécie de súmula cumulativa dos discos que testemunharam as mais notáveis aproximações dos códigos concêntricos do seu labor ao seu âmago holístico: os igualmente arrebatadores “Dwitza” (2002), “Aystelum” (2005) e “A.O.R.” (2013). Minuciosa e escrupulosamente escoltado por estetas do calibre estelar de Patrice Rushen, Cecil McBee ou o imenso Hubert Laws, Ed Motta evoca o “Movimento perpétuo” de Carlos Paredes e a agilidade metajazzística dos Earth, Wind & Fire, enquanto, auscultando o seu interior, desafia o potencial infinito da sua espiral criativa, atravessando os consecutivos portais e passagens da sua mente e alma: A.O.R. celestial que desemboca em spiritual jazz ascético que desagua em r&b místico, etcetera. Se fosse ainda mais gráfico, seria provavelmente um híbrido de M. C. Escher com a “pintura dentro da pintura” (“La condition humaine”, p. ex.) de René Magritte. Assim, é “só” um superlativo holograma que (con)funde a luz do céu da primavera da California com a luz do céu da primavera do Rio de Janeiro – projetado, claro, nas espiras hipnóticas de um disco de vinil.

Bruno Bènard-Guedes

disco “Perpetual gateways”, de Ed Motta
Must Have Jazz / import. Flur, 2016

 

texto originalmente publicado no Jornal de Letras n.º 1187, de 30 março 2016

 



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