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“Fingido e verdadeiro ou O martírio de S. Gens, ator”, do Teatro da Cornucópia

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Palavras de Santo Agostinho sobre o grau de veracidade ou engano da experiência dos sentidos são as primeiras que se ouvem numa peça, em si mesma, repleta de ambiguidades. “Fingido e verdadeiro ou O martírio de S. Gens, ator” é uma desconstrução do texto de Lope de Vega, “O fingido verdadeiro”, em que Gens, dramaturgo e ator do imperador romano Diocleciano, do século III, famoso pelas suas sátiras aos cristãos, certo dia, perante a sua representação de mártir, se convence de tal forma que acaba por se converter. Luís Miguel Cintra desfragmenta o texto original de Vega para questionar e esbater as fronteiras entre o verdadeiro e o fingido do trabalho do ator (não há, na representação, um “fingimento verdadeiro”) e confrontar, ao mesmo tempo, o espetador com a diluição desse espaço. Esta peça é uma metarreflexão do teatro, com o teatro dentro do teatro (Gens é ator, dramaturgo e encenador de um grupo de comediantes), que a equipa da Cornucópia trabalha exemplarmente para lá da peça de Vega. Há comentários e apartes (quase à maneira de Brecht, com fins explicativos, lendo Cintra passagens da “Flos sanctorum” e da “História imperial e cesárea”, sobretudo nos dois primeiros atos), os atores leem o texto e são repreendidos, como se o teatro se visse em espelho no seu próprio palco. E porque o teatro é a “imagem da vida”, nele se usam e deixam cair as máscaras, põem em cena as angústias, os martírios e as contradições inerentes à incessante procura pela verdade e pelo conhecimento das coisas, num mundo em que nada se sabe – ou o pouco que se pode saber é que existe a ficção. Perante isto, resta a ironia ou a graça divina, que o olhar hamletiano de Gens, feito santo, procura na caveira humana para pensar a comédia da vida. “Fingido e verdadeiro ou O martírio de S. Gens, ator”, pelo Teatro da Cornucópia é, assim, um momento absolutamente central do ano teatral português.

29 março > 29 abril
espetáculo “Fingido e verdadeiro ou O martírio de S. Gens, ator”, a partir de Lope de Vega, adaptação e encenação de Luís Miguel Cintra, com Luís Miguel Cintra, Sofia Marques, Cleia Almeida, Luís Lima Barreto, Ricardo Aibéo,…
Teatro do Bairro Alto, Lisboa

 

João Eduardo Ferreira:
A obra primeira após a polémica crise dos subsídios “F. J. Viegas” põe a nu, frente aos olhos do espetador, o esqueleto de uma peça sobre o martírio do ator Gens, tornado santo por devoção ao espetáculo. Quem mais ilude, mente ou representa? Deus, o imperador ou o ator? O corpo pode ser corrompido, os sentidos podem enganar, mas o verbo permanece no início da história. Uma alta comédia a fingir um drama verdadeiro.

 

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