Da realidade como o avesso da fatalidade: o tom é jubilar – como na idiossincrasia de um funeral de New Orleans, casa imaterial de Allen Toussaint -, o tom é de jubilar vida imaterial e eterna nestas “American tunes” que firmou dias antes da sua morte. Desapressado, como o mais lhano e íntegro cursar do tempo, rigorosamente adverso ao tumulto da contemporaneidade, urdido onde o lirismo tudo fantasia, o egrégio compositor e pianista fez ascender as “suas” derradeiras canções americanas (i.e., temas de Fats Waller, Professor Longhair, Billy Strayhorn, Duke Ellington, Bill Evans, ou Louis Moreau Gottschalk, entre outros, mediados por uma inédita e por um seu clássico) à singular transparência da sua peroração instrumental – contida, lúdica, afável, sábia. Milagre no qual todas as convenções formais se esbatem e a sua graça se soberaniza, imaculada, imperecível, intangível. Prenúncio apostólico do legado de postrema generosidade que tudo isto representaria, “American tune” – uma música sobre a resiliência (mascarando o desencantamento, o exaurimento, a deriva, o abandono, a morte), canção desassossegada por Paul Simon a partir de uma conversão de Johann Sebastian Bach de uma peça de 1601 de Hans Leo Hassler, aqui perenizada pelas teclas e voz de Toussaint -, conclui-se lancinante e comoventemente do princípio (“Many is the times I’ve been mistaken / And many times confused / Yes, and I’ve often felt forsaken / And certainly misused / Oh, but I’m all right, I’m alright / I’m just weary to my bones”) ao fim (“We come on the ship that sailed the moon / We come in the age’s most uncertain hours / And sing an american tune / Oh, it’s all right, it’s alright, it’s alright / You can’t be forever blessed / Still, tomorrow’s going to be another working day / And I’m trying to get some rest / That’s all, I’m trying to get some rest”). Mas nada, nada, nada nos protege do seu dilacerante centro: “And I dreamed I was dying / I dreamed that my soul rose unexpectedly / Looking back down at me / Smiled reassuringly”. Este é o seu sorriso. Para todo o sempre.
Bruno Bènard-Guedes
disco “American tunes”, de Allen Toussaint
Nonesuch / Warner Music Portugal, 2016
texto originalmente publicado no Jornal de Letras n.º 1193, de 22 junho 2016