Milagres assim só se revelam e materializam na câmara escura de reflexos e reflexões hermenêuticas de Ran Blake: estão cá Rodgers & Hart (“Ten cents a dance” e “Why can’t I”), Cole Porter (“I get a kick out of you” e “Anything goes”), Ray Charles (“Hallelujah, I love her so”) ou Kurt Weill (“Speak low”), mas nada aqui se alinha pela bitola pueril que no middle of the road jazzístico insiste em confundir os clássicos do american songbook com um inane teatro de marionetas. A memória de repertório que, por uma ou por outra via, remete à paisagem vocal da incomensurável Chris Connor é pouco mais do que um sensato e diplomático gesto de política pedagógica – na sua mais rigorosa essência, este é o material que invariavelmente tem iluminado os espelhos fractais que escoram a carreira imaculada do egrégio pianista norte-americano, palimpsesto de um léxico interpretativo só seu, apostila potencialmente infinita da sua própria ficção, hipótese de inalheável exegese composicional. Isto, obviamente, não abdicando jamais de refletir sobre a energia intrínseca destas peças como enunciado dúctil, aberto, em permanente redefinição, enfatizando os recantos mais insuspeitos de cada canção, realçando-lhes – tal como em Chris Connor, mas com uma fisionomia instrumental substancialmente distinta – a graça, a agilidade, a sobriedade, a gravidade, a inquietude, a dinâmica, a surpresa, a profundidade, a respiração, o rigor, a exigência, a negritude, a sensualidade, o silêncio. Silêncios como intervalos narrativos que legitimizam o inefável, o insondável, o intangível. Silêncios como sombras ascéticas de tão iluminado dédalo.
Bruno Bènard-Guedes
disco “Cocktails at dusk – A noir tribute to Chris Connor”, de Ran Blake
Impulse! / Universal, 2014
texto originalmente publicado no Jornal de Letras n.º 1157 de 4 fevereiro 2015
